sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A voluptuosidade - São Gregório de Nissa

 
"A batalha é dificílima. Precisamos invocar o Altíssimo para que se digne conceder a nós a graça da brutalidade, da força interior. Só assim poderemos vencer a impureza. Boa reflexão!"
Everth Oliveira

A voluptuosidade

São Gregório de Nissa

O fato de que o investigador do vôo das aves, que mencionamos, praticava a magia é atestada pelo relato quando diz que tinha o poder de fazer vaticínios na mão e de consultar através das aves e, antes disso, que havia conhecido pelo zurro da jumenta o concernente à rivalidade que tinha diante. A Escritura apresentou o zurro da jumenta como uma palavra articulada, porque ele habitualmente consultava com uma força diabólica as vozes dos animais. Mostra-nos com isto que quem está enredado com este engano dos demônios chega inclusive a tomar como uma palavra racional o ensinamento que encontra na observação dos sons dos irracionais. Ao escutá-la, compreendeu por aquelas mesmas coisas em que havia errado, que era invencível a força contra a qual o haviam alugado.

Também na narração evangélica a turba de demônios chamada legião (Mc 5, 9 e Lc 8, 30), se prepara para se opor ao poder do Senhor. Porem quando se aproxima Aquele que tem o poder sobre todas as coisas, a horda proclama seu poder excelso e não oculta a verdade: que este é a força divina, e que em tempo vindouro infligirá o castigo aos pecadores. Pois diz a voz dos demônios: “Sabemos quem és: o Santo de Deus, e que vieste antes do tempo a atormentar-nos” (Mc 1, 24; 5, 7 e Lc 4, 34-35). Isto é o que sucedeu também então: o poder demoníaco que acompanhava o mago ensinou a Balaan que o povo era invencível e invulnerável.

Harmonizando este relato com as coisas que já explicamos, dizemos que quem quer maldizer os que vivem na virtude não pode pronunciar nenhuma palavra hostil nem discordante, mas converte sua maldição em benção. Isto significa que a afronta da difamação não alcança os que vivem na virtude. Com efeito, como pode ser caluniado de avareza aquele que não possui nada? Como será reprochado de libertino aquele que vive só levando uma vida de anacoreta? De cólera aquele que é manso? De orgulho aquele que é humilde? Ou como se dirigirá qualquer outra crítica àqueles que são conhecidos pelo contrário, que têm por finalidade apresentar uma vida inacessível à critica a fim de que, como diz o Apóstolo, nosso adversário se envergonhe não tendo nada que dizer (Tt 2, 8)? Por esta razão disse a voz de quem havia sido feito vir para maldizer: “como maldiria àquele que não maldiz o Senhor?” (Nm 23, 8), isto é, como acusarei quem não oferece matéria de acusação, já que, por olhar sempre para Deus, leva uma vida inacessível ao pecado?

Apesar de haver falado isto, o inventor da maldade não cessa em absoluto seu projeto contra os que tentava, mas muda a insídia para sua forma mais antiga de tentar, tentando atrair a natureza para o mal outra vez por meio do prazer. Com efeito, o prazer é apresentado por todo vício como isca que arrasta facilmente as almas sensuais a cair no anzol da perdição. É sobre tudo por meio do prazer impuro que a natureza é arrastada para o mal sem que se controle. É o mesmo que sucede agora. Com efeito, aqueles que haviam prevalecido sobre as armas, que haviam demonstrado que todo ataque de ferro era mais débil que sua própria força, e que com seu poder haviam feito fugir o exército dos inimigos, estes foram feridos pelos dardos femininos através do prazer. E os que haviam sido mais fortes que os varões se converteram em vencidos pelas mulheres.

Com efeito, logo que vieram às mulheres que punham ante eles suas próprias formas em vez de armas, imediatamente esqueceram o ímpeto de seu valor, apagando seu ardor no prazer. Eles estavam em uma situação na qual era natural deixar-se levar à união proibida com estrangeiros. Com efeito, a vizinhança com o mal já era um afastamento da ajuda do bem. Imediatamente a Divindade se levantou em cólera contra eles. Porém o zeloso Finéias não esperou que o pecado fosse purificado por uma decisão do alto, mas ele mesmo se converteu em juiz e verdugo (Nm 25, 1-9). Enchendo-se de ira contra quem se havia deixado levar pela paixão, fez as vezes de sacerdote purificando o pecado com sangue: não com o sangue de algum animal inocente, que não tivera parte na imundície da intemperança, mas com o dos que se haviam unido entre si no pecado.

Sua lança deteve o movimento da justiça divina ao atravessar de um só golpe os corpos dos dois, mesclando com a morte o prazer dos pecadores. Parece-me que o relato propõe aos homens um ensinamento útil à alma. Através dele aprendemos que, sendo muitas as paixões que se opõem à razão do homem, nenhuma outra paixão tem tanto poder contra nós que possa igualar a enfermidade do prazer. Pois o fato de que aqueles israelitas, que unidos se haviam mostrado mais fortes que a cavalaria egípcia, haviam superado os amalecitas, haviam parecido temíveis ante o povo que lhes era vizinho e depois destas coisas haviam vencido a falange dos madianitas, hajam caído na escravidão da paixão quando viram as mulheres estrangeiras, mostra bem – como dissemos – que a voluptuosidade é para nós um inimigo difícil de combater e de vencer.

Tendo vencido imediatamente, só com seu comparecimento, a homens impetuosos com as armas, a voluptuosidade levantou contra eles a bandeira da desonra, publicando sua infâmia à luz do sol. Pois mostrou que os homens, por sua causa, converteram em animais os que o impulso bestial e irracional à impureza convenceu a que esquecessem de sua natureza humana, a ponto de não encobrir sua impiedade, mas gloriar-se com a infâmia de sua paixão e adornar-se com a imundície da vergonha, chafurdando como porcos na lama da impureza, abertamente, à vista dos demais. Que lição tiraremos deste relato? Que sabedores de quanta força para o mal tem a enfermidade da voluptuosidade, mantenhamos nossa vida o mais afastada possível desta vizinhança, de forma que esta enfermidade, que é como um fogo que com sua proximidade acende a chama perversa, não tenha nenhum acesso a nós. Isto é o que ensina Salomão na Sabedoria ao dizer que não se deve pisar a brasa com o pé descalço e que não se deve introduzir fogo no seio (Pr 6, 27-28), pois está em nosso poder permanecer livres de paixão contanto que nos mantenhamos longe de avivar o fogo.

Porém se, ao contrário, chegarmos a tocar este fogo ardente, penetrará em nosso seio o fogo da concupiscência, e então se seguirá a queimadura para o pé e a ruína para o seio.

São Gregório de Nissa

Sobre a vida de Moisés”, cap. 46
 Fonte: Ecclesia Una

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