quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A Providência Divina e o dever do momento presente, Parte II - Pe. Reginalg Marie Garrigou-Lagrange


O ENSINAMENTO DAS ESCRITURAS E DA TEOLOGIA SOBRE O DEVER DO MOMENTO PRESENTE.

São Paulo escreveu na I Epístola aos Coríntios, X, 31: “Ou comais ou bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus”. — Também em Colossenses, III, 17: “Tudo o que fizerdes, em palavras ou por obras, (fazei) tudo em nome do Senhor Jesus Cristo, dando por ele graças a Deus Pai”.

Nosso Senhor disse, como conta São Mateus, XII, 34: “A boca fala da abundância do coração. O homem bom tira boas coisas do bom tesouro do seu coração; e o mau tira coisas más do mau tesouro. Ora, eu digo-vos que, de qualquer palavra ociosa que disseram, os homens darão conta no dia do Juízo”.

Santo Tomás mostra todo o sentido e o alcance desta doutrina quando ensina (Ia IIae, q. 18, a. 9) que não há ato deliberado que, concretamente considerado, “hic e nunc”, seja moralmente indiferente; cada um de nossos atos deliberados é ou bom ou mau. Por quê? Porque todo ato deliberado de um ser inteligente deve ser racional ou ordenado a um fim bom, bom em si mesmo; e todo ato deliberado de um cristão deve ser ordenado, ao menos virtualmente, a Deus. Se for assim, será um ato bom; se não for assim, será um ato mau. Não há meio termo. Mesmo nossas recreações, nossos divertimentos, nossos passeios devem ter um fim bom em si. É verdade que ir passear, considerado abstratamente, é indiferente. Também pode ser indiferente ir passear aqui ou ali, mas o passeio deve ter um fim racional, como por exemplo, o de reparar nossas forças, para retomarmos depois o trabalho que devemos realizar. Por isso mesmo, os divertimentos têm um sentido moral e um valor próprio na vida do ser racional.

Como diria de modo simbólico um bom pregador, todos os nossos atos deliberados são como as gotas de chuva que caem do alto da montanha, na linha divisória das águas; destas gotas de chuva, algumas irão para um rio e um oceano; as outras, para outro rio e outro mar, oposto e distante. Assim também nossos atos vão para o bem, isto é para Deus ou para o mal. Nenhum desses atos, tomados na realidade concreta da vida, é indiferente.

À primeira vista, esta doutrina parece muito rígida. Mas não é: basta uma intenção virtual ou implícita, renovada pela manhã no momento da oração, e também cada vez que o Espírito Santo nos faz elevar nossos corações para Deus.

Esta é, muito pelo contrário, uma doutrina consoladora, pois, segue-se daí, que na vida do justo, todo ato deliberado é bom e meritório, seja fácil ou difícil, pequeno ou grande.

Esta doutrina é também santificante se a entendermos bem e a vivemos, pois nos leva a pensar que o que Deus faz a cada momento é bem feito e cada acontecimento é um sinal de sua vontade. Assim Jó, privado de tudo, via nessa privação uma vontade de Deus que o provava para o santificar e em vez de maldizer aquele minuto tão penoso, bendizia o nome do Senhor. Aprendamos pois a reconhecer, no que acontece a cada momento, seja uma vontade positiva de Deus, seja uma permissão divina, sempre ordenada a um bem superior. Assim, aconteça o que acontecer, sempre guardaremos a paz.

São Francisco de Sales resumiu toda esta doutrina nestas poucas palavras: “Cada momento que chega até nós encerra em si uma ordem de Deus, e irá mergulhar na eternidade, permanecendo para sempre aquilo que dele fizemos”.

Este reconhecimento quase constante da vontade divina, discernida do dever do momento presente, decorre sobretudo do dom da Sabedoria que faz ver em Deus, causa primeira e fim último, todos os acontecimentos, tanto os penosos quanto os agradáveis. É por isto que Santo Agostinho diz que a esse dom corresponde a bem-aventurança dos pacíficos, quer dizer, daqueles que conservam a paz onde os outros se perturbam e que muitas vezes levam a paz aos mais perturbados: “Beati pacifici, quia filii Dei vocabuntur”.

(extr. de "La Providence et la Confiance en Dieu", ed. Desclée, Paris, 1932. Permanência, Set-out. de 79. Trad.: Júlio Fleichman)
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Notas:

[1] Como se lê no Livro II dos Reis, 16, 6: “Semei, parente de Saul, ultraja o profeta David, jogando-lhe pedras e o maldizendo. Um oficial de David quer matar o insultante. David responde: “Deixe-o amaldiçoar! Pois se o senhor lhe disse: Amaldiçoa David quem lhe dirá: por que ages assim?... Deixe-o maldizer... talvez o Senhor olhe para minha aflição e me dê bens pelas maldições desse dia”. Esta palavra faz pensar naquela de Nosso Senhor quando, durante a Paixão, recomendando calma a Pedro, se deixa prender pelos homens armados conduzidos por Judas e cura o soldado Malco que Pedro tinha ferido com sua espada. Quantos fatos semelhantes a estes, na vida dos santos se realizaram, quando ocasiões imprevistas se apresentaram.

[2] Dt 32, 39; 1 RS 2, 6; Tb 13, 2; Sb 16, 13.

[3] O Abandono à Providência, ed. abreviada, 1. II, cap. VII.

[4] Assim se explica o bem sobrenatural feito às almas por santos como o Cura d’Ars, que sem grande cultura teologal, tinha o sentido da conduta de Deus em relação às almas mais diversas. Era assim que o santo Cura dava no mesmo dia, sem tempo para refletir, a centenas de pessoas, o conselho certo, imediatamente aplicável, que lhes era necessário.

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