Jacques Leclercq, “Meditações
sobre a vida cristã”
É apenas um
homem. Tem um corpo opaco, como todos os homens, gracioso ou disforme, pouco
importa. Trocamos algumas frases; de súbito vejo a sua alma e ela mergulha na
minha. Abre-se-me. Ultrapassa-se o corpo e o fraseado abstrato sobre assuntos
impessoais: a sua alma está ali, fraternal, e abre-se à minha porque os seus
horizontes são os meus. Somos como irmãos contemplando juntos uma paisagem.
É totalmente
diferente da camaradagem.
A camaradagem
ou companheirismo é contato material. O homem tem necessidade dos seus
semelhantes e não suporta estar só. O camarada mobila a vida. Caminhar a dois,
torna o passo mais ágil e o companheiro de acaso basta para isto. Cantar em
conjunto dilata o peito e gera a alegria de viver. A solidão pesa.
Mas a amizade
é outra coisa.
A amizade
forma-se nas regiões profundas de onde parte a claridade da minha alma e é dali
que ela brota. Provém de se reconhecer no amigo a própria luz interior.
Sentimo-nos compreendidos: o amigo
vibra com as coisas que nos fazem vibrar, entusiasma-se por aquilo que nos
entusiasma; partilha das nossas admirações, das nossas simpatias e das nossas
antipatias.
Se tenho uma
convicção da qual ninguém partilha, à minha volta, e subitamente encontro
alguém que pensa exatamente como eu e reage da mesma forma, em situação
idêntica, logo alguma coisa se abre em mim como uma flor e eu me converto em
outro homem.
Mas que será a
nossa amizade, se eu encontro em outrem a mesma aspiração de viver em Ti; se a
poesia do Evangelho, o apelo divino, o emociona como a mim; se o sonho de uma
vida dilatada à medida da Tua alma de Homem-Deus, o escondido sonho que eu
alimento em segredo, o descubro nele, igualzinho, e me apercebo de que
caminhávamos a par, sem nos conhecermos sequer?
O amigo é
aquele diante do qual a vida interior pode pensar-se em voz alta, porque ele me
compreende e eu o compreendo, porque a minha vida é a sua. E se Tu és a vida de
ambos, Senhor Deus, quanta força e que pureza encontrar nele a Tua vida
secreta, enquanto eu cuido de a enraizar em mim!
(...)
A amizade
deseja a vida e a ação em comum. A comunidade de almas nutre-se e aprofunda-se
por uma obra comum porque é nas obras que se afirma a alma.
Enquanto nos
limitamos ao sonho, ignoramos a parcela de ilusão que trazemos em nós; mas, em
contato com a realidade, na ação, verifica-se a autenticidade da vida interior.
A ação, que manifesta a unidade fundamental de aspirações, sela a união pela
experiência vivida e confirma a segurança íntima das potências de sentimento e
de pensamento.
É a amizade
que empresta o seu valor à vida comum. Se caminhamos com outros, o caminho não
se reduz à paisagem que se desenrola diante dos olhos, aos horizontes e ao ar
que dilata o peito, ao esforço muscular do corpo descontraído, à coluna de
fumo, ao entardecer, sobre a fogueira do acampamento; traduz-se,
primacialmente, na fraternidade das almas, para as quais os passos, que juntos
se estendem, simbolizam esse outro caminho que é a vida e a força que se recebe
no caminhar, ombro com ombro, para o mesmo ideal. E quando este ideal está em
Cristo; quando os nossos corações batem, um uníssono, por um mesmo desejo
ardente de trabalharmos para que Ele reine, de sermos, todos unidos, os
artífices da catedral perfeita; quando entrevemos, juntos, o edifício cujas
linhas somos convidados a precisar e, ao cair da tarde, rodeando a fogueira do
acampamento, a visão do Reino paira sobre os nossos cantos; verdadeiramente,
uma presença se faz sentir na comunidade das almas.
A Tua
presença, Mestre soberano, Tu que és o Inefável e és nosso irmão. E, ao longo
do caminho, ao sol do meio dia ou nas névoas da tarde ou no crepúsculo, Tu nos
acenas; desprende-se pureza das coisas e há pureza em nós; o mundo toma o seu
verdadeiro sentido e a estrela que sobe no horizonte é um convite para a vida
fraterna, em que levaremos a termo a gesta do cristão no mundo.
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